sábado, 17 de fevereiro de 2007
O Entrudo tradicional
Moda do Entrudo - José Afonso
Longe das minhas preferências, um dos Carnavais que hoje mais se vende pelo mundo fora, o brasileiro, especialmente o carioca, terá sido introduzido pelos portugueses no Brasil provavelmente no séc.XVII. Em 1840 realizou-se o primeiro baile. Em 1846 surgiram os Zés Pereiras, grupos de foliões de rua com bombos e tambores. Vieram depois os cordões, as sociedades carnavalescas, blocos e ranchos. O corso, hoje desaparecido, consistia num desfile de carros pelas ruas da cidade, todos de capota aberta, com foliões fantasiados atirando confetes e serpentinas uns aos outros. Em 1929, foi fundada a primeira escola de samba (Deixa Falar), no bairro carioca do Estácio, seguida de várias outras, no Rio de Janeiro e em outros estados. Agora, importamos escolas de samba e artistas de telenovela para serem reis e rainhas dos carnavais de Ovar, Torres Vedras, Mealhada ou Loulé, para só referir alguns. E, na Madeira, a festa é rija e o dinheiro e a bebida correm a rodos.
Contudo, interessa-me dar conta de algumas celebrações do Entrudo que ainda resistem em Portugal e que mantêm a sua singularidade, de acordo com as nossas velhas tradições. Hoje, vamos até Trás-os-Montes, onde se contam pelo menos três: Lazarim, Vinhais e Podence. É em Trás-os-Montes, nessa região de pedra de que Torga tão bem falava , que, à semelhança da vizinha Galiza, mais e melhor se festeja esta época que antecede a austeridade da Quaresma. Estas três localdades são, ainda hoje, aquelas onde o espírito rapioqueiro e saudavelmente jocoso e alegre do Entrudo mais se faz sentir. Daí o destaque que lhes concedi com toda a naturalidade e sentido de justiça. O resto dos carnavais, com algumas excepções que amanhã ou depois publicarei, são festivais de silicone e de samba autêntico ou desvirtuado. O Entrudo legítimo é cor, uma certa licenciosidade, sã irreverência mas, acima de tudo, imaginação e arte popular. E ainda me recordo de, nos anos 50, ver alguns homens vestidos de mulheres que provocavam a hilariedade dos passantes e o olhar atento e assustado para o lado para ver se havia polícia por perto. É que....tal acto era considerado, pela autoridade moral puritana e beata do Estado, como um atentado à Moral e aos Bons Costumes da nação !...
As Máscaras de Lazarim, feitas em madeira de amieiro, são vendidas para os EUA, França e Alemanha. (Foto de S. Granadeiro) Lazarim - O Testamento das comadres
Em Lazarim, o Entrudo é uma festa local meticulosamente preparada nas semanas antecedentes. O ponto culminante é dado pela pública leitura das «deixadas», testamentos que dividem simbolicamente um burro pelos rapazes e raparigas da aldeia. Jocosas e irónicas, são preparadas em segredo pelos mais jovens, que frequentemente recorrem à sabedoria dos mais velhos. Essas “deixadas” são escutadas em silêncio pelos mascarados para não serem reconhecidos pelas vítimas das suas partidas.
Mas a festa contem ainda o Desfile de Caretos, um concurso de máscaras de madeira fabricas pelos artesãos locais e a Queima dos Compadres - o compadre e a comadre, dois bonifrates carregados de pólvora e que, na terça-feira, põem ponto final à festa e à rivalidade que durante várias semanas opôs rapazes e raparigas.
Tradicionais são também as refeições cerimoniais à base de carne de porco, que marcam o início do período de abstinência da Quaresma.
Já em Vinhais e Podence é o movimento e a acção endiabrada dos mascarados que predomina.
Os Diabos de Vinhais A acção dos diabos de Vinhais já não produz hoje os efeitos temidos de outrora, quando as raparigas nem se atreviam a sair à rua. O ritual de punição e correrias pelas ruas da vila é hoje uma manifestação tímida e cada vez mais incerta, com não mais do que uma dezena de mascarados. Em Vinhais, em dia de Quarta-Feira de Cinzas, um grupo de rapazes transformam-se em verdadeiros diabos. O traje vermelho com máscara incluída dão o ar atrevido e assustador necessário à credebilidade destas personagens possessas. Eles correm pelas ruas a perseguir quem se cruza com eles. Os diabos, acompanhados por outra figura mascarada, a Morte, escolhem como vitimas preferidas as mulheres e raparigas que chegam a ser agarradas, se necessário dentro da casa das próprias, a fim das vergastar com um chicote de corda. A Morte, com o seu fato negro e de rosto mascarrado segura uma gadanha na mão, vagueia em silêncio pelos caminhos de Vinhais e sempre que encontra um habitante obriga-o a ajoelhar-se perante si e a beijar a gadanha.É uma tradição que tem sofrido o passar dos anos e tem demostrado um carácter mais controlado e de maneiras mais correctas, e o ritual de punição e correrias já não é tão temido como antes. Os assaltos, as perseguições e os açoites animavam e caracterizavam o ritual animalesco e desinibido.
Mas, em Podence, pequena aldeia situada a poucos quilometros de Macedo de Cavaleiros, a tradição está bem viva e conserva ainda uma boa parte da licenciosidade «selvagem» que sempre a caracterizou.
A " caçada", em Podence. Os dias grandes da festa são o Domingo Gordo e Terça-feira de Carnaval e os Caretos só param para matar a sede ou para combinarem mais uma investida sobre o Largo da Capela, a pequena praça da aldeia onde todos assistem ao ritual.
Ninguém se atreve a opôr-se às iras dos Caretos endiabrados. Apenas as Matrafonas (raparigas disfarçadas de homens e vice-versa) são poupadas à sumária justiça carnavalesca, bastante singular no caso desta aldeia transmontana: os demónios mascarados lançam-se ao assalto das moças e, encostando-se a elas, ensaiam uma dança um tanto erótica, agitando a cintura e fazendo embater os chocalhos que trazem pendurados contra as ancas das vítimas.
Caretos de Podence
Na investida bárbara que faz ecoar por toda a aldeia o alarido dos chocalhos e o tropel surdo dos passos, os Caretos levam tudo a eito. Por detrás da máscara de latão os olhos procuram muitas vezes as moças mais apetecidas, quer sejam da terra ou de fora, para o sacrifício. Não conhecem entraves ou proibições: subir às varandas, trepar aos telhados ou correr pelo Largo da Capela. Tudo vale para «chocalhar» e misturar o tilintar dos chocalhos com os risos das raparigas.
Na Terça-feira Gorda, a aldeia mergulhará novamente numa vertigem de correrias e travessuras que só terminarão com o cair da noite e com o cansaço dos demónios de fatos de franjas de cores vivas.
Publicação nº 291 - jorggEtiquetas: carnaval, entrudo, Lazarim, Podence, Trás-os-Montes, Vinhais
Sino tocado em
fevereiro 17, 2007 -
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