Especialmente dedicada ao Paulo Vilmar e a outros amigos que não conheciam José Afonso, deixo mais uma cantiga. Depois de muito escolher, decidi-me por esta do período post-revolucionário português, bem elucidativa da arte transnacional do Zeca, numa mistura harmónica fabulosa de ritmos afro-brasileiros. Espero ter feito uma escolha do vosso agrado. - Jorge G.
Capa de José Santa-Bárbara
«COMO SE FORA SEU FILHO»
Começado ainda antes do espectáculo do Coliseu dos Recreios de 29 de Janeiro de 1983, o penúltimo álbum de José Afonso foi terminado em Abril do mesmo ano ( o último seria em 85 mas no qual, minado pela doença, apenas interpretou duas canções).
Como Se Fora Seu Filho é por muitos entendido como o testamento do Zeca, talvez por ser o derradeiro trabalho onde canta todas as músicas ou igualmente pelos próprios textos de algumas composições - especialmente Utopia, Canção da Paciência ou esta que aqui deixo, O País vai de carrinho.
Nesta obra, o Zeca ofereceu-nos lúcidos retratos quer de esperança quer de desencanto retivamente ao Portugal da altura, passados então quase 10 anos depois de Abril de 74.
Ele está por trás de todos os arranjos, tanto na ideia original como na execução final em estúdio, ainda que a produção do disco e a direcção musical sejam repartidas entre Júlio Pereira, José Mário Branco, Fausto Bordalo Dias e o próprio Zeca.
De entre os convidados destaque-se Pedro Casaes, membro dos Gaiteiros de Lisboa, para o já desaparecido Sérgio Mestre, para o violinista e patriarca da música improvisada no país Carlos Zíngaro, para Pedro Caldeira Cabral e a sua guitarra portuguesa ( presente nesta mesma canção ), e ainda para as participações especiais do Xico Fanhais e de alguns elementos do grupo Cantaril.
São do Zeca estas palavras: "Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é o que fica. Quando as pessoas param há como que um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo político como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alibis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta."
"Admito que a revolução seja uma utopia, mas no meu dia a dia procuro comportar-me como se ela fosse tangível. Continuo a pensar que devemos lutar onde exista opressão, seja a que nível for."
Por outro carreiro, também eu quero continuar a correr atrás da Utopia.
Até sempre, Zeca !
- Jorge G.
O país vai de carrinho
Vai de carrinho o país
Os falcões das avenidas são
São os meninos nazis (bis)
Blusão de cabedal preto
Sapato de bico ou bota
Barulho de escape aberto
Lá vai o menino-mota (bis)
Gosta do passeio em grupo
No Mercedes que o papá
Trouxe da Europa connosco
Até à Europa de cá (bis)
Despreza a ralé inteira
Como qualquer plutocrata
Às vezes sai para a rua
De corrente e de matraca (bis)
Se o Adolfo pudesse
Ressuscitar em Abril
Dançava a dança macabra
Com os meninos nazis (bis)
Depois mandava-os a todos
Com treze anos ou menos
Entrar na ordem teutónica
Combater os sarracenos (bis)
Os pretos, os comunistas
Os Índios, os turcomanos...
Morram todos os hirsutos!
Fiquem só os arianos ! (bis)
Chame-se o Bufallo Bill
Chegue aqui o grande Neves
Para recordar Wiriamu,
Mocumbura e Marracuene (bis)
Que a cruz gamada reclama
De novo o Grão-Capitão
Só os meninos nazis
Podem levar o pendão (bis)
Mas não se esquecam do tacho
Que o papá vos garantiu
Ao fazer voto perpétuo de ir
Para a p... que o pariu (bis)
Publicação nº 540 - J.G.