Em menos de duas semanas partiram do mundo dos vivos duas
das personalidades mais marcantes da cultura portuguesa. Herberto e Manoel
deixam-nos uma obra enorme em volume e grandeza e são, ambos, homens de uma
cultura que se pode considerar não popular, ou melhor, impopularizável. Um e
outro nunca estabeleceram com o grande público uma relação de proximidade. Nem
foi esse o seu desejo. Criadores no mundo que eles mesmos construíram, foram
artistas artesãos apaixonados e desprovidos daquele sentimento pequeno de amor
pelo reconhecimento universal e pelas honrarias efémeras e tantas vezes
hipócritas.
Como sempre, é depois da morte de alguém que se perfilam os
empertigados nas loas, nos epitáfios balofos, numa exaltação oportunística e
tartufista das qualidades do falecido. Que ao menos sirvam estas incursões de
ocasião na obra de Herberto e de Manoel para que os descubram realmente e
possam vir a amar o que eles realizaram. Então, sim, o choro colectivo passará
a ser sentido e cantado, bem mais verdadeiro do que qualquer homenagem ou
estátua.
Recatado, quase anónimo, foi o funeral do poeta “eremita”.
Como ele quereria. «… não digam nada a ninguém e o prémio dêem-no a outro.»
O de Manoel de Oliveira viu-se e reviu-se através da
insaciável sede dos media. E viu-se a mórbida coscuvilhice dos populares que
enxamearam o velhinho cemitério de Agramonte, aquele mesmo onde tantas vezes me
desloquei pela mão de minha avó materna, construído em meados do séc. XIX após
uma tremenda epidemia de cólera no Porto; havia que enterrar os mortos e os
cemitérios então existentes encontravam-se na baixa da cidade, em ruas
propensas ao alastrar da epidemia e, assim, os enterros na baixa foram
proibidos a toda a pressa havendo que encontrar um local nos então arredores da
cidade, hoje a central Boavista.
Em Agramonte, durante o funeral, vi o inimaginável: alguém
brandindo um cartaz a dizer “Não queremos Manoel de Oliveira em Lisboa e se for
preciso construímos um Panteão no Porto”, num clara alusão à hipótese logo
formulada de o cineasta poder vir a ocupar um lugar no Panteão Nacional. O próprio
presidente da Câmara do Porto já afirmou que “gostaria que o corpo de Manoel
Oliveira permanecesse no Porto. A cidade onde nasceu, viveu e morreu”. Manoel
não é do Porto, como Herberto não é do Funchal nem de Lisboa; como Sophia não é
do Porto nem de Lisboa. Esta mesquinhez, esta mentalidade tacanha, este
aproveitamento político nojento é que tornam pequeno este país que muito faz por
não merecer os seus grandes Homens.
Malkovich, numa demonstração de pura civilidade, foi
exemplar ao responder com simpatia mas firmeza: “Hoje, não, talvez noutra
altura”, perante a insistência de uma repórter de TV para que fizesse um
comentário à morte do mestre e amigo. A classe de Malkovich em contraste com os
mirones papalvos e os hipócritas de óculos escuros e gravatas pretas
deixaram-me a pensar se não viveremos justamente onde merecemos: num país de
bonifrates de feira.
- um texto de opinião de Jorge P. Guedes, 4 Abril 2015 – Por
opção, não escrevo segundo o A. O. De 1990
Etiquetas: cinema, Cultura, Herberto Hélder, Literatura, Manoel de Oliveira, o sino da aldeia, poesia, SOCIEDADE, texto de opinião de Jorge P. Guedes