
São duas as versões da lenda que deu origem à expressão popular “É como as obras de Santa Engrácia...”, normalmente utilizada para designar “aquilo que não tem fim”.
A mais conhecida e romântica das duas, é a versão popular, de acordo com a qual “Simão Pires, um cristão novo, cavalgava todos os dias até ao convento de Santa Clara para se encontrar às escondidas com Violante.
A jovem tinha sido feita noviça à força por vontade do seu pai, fidalgo que não estava de acordo com o seu amor.
Um dia, Simão pediu à sua amada para fugir com ele, dando-lhe um dia para decidir. No dia seguinte, Simão foi acordado pelos homens do rei que o vinham prender acusando-o do roubo das relíquias da igreja de Santa Engrácia que ficava perto do convento.
Para não prejudicar Violante, Simão não revelou a razão porque tinha sido visto no local. Apesar de ter invocado a sua inocência, foi preso e condenado à morte na fogueira, que se realizaria junto da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado.
Quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou: “É tão certo morrer inocente como as obras nunca mais acabarem!”.
Os anos passaram e a freira Violante foi um dia chamada a assistir aos últimos momentos de um ladrão que tinha pedido a sua presença. Revelou-lhe que tinha sido ele quem roubara as relíquias e sabendo da relação secreta dos jovens, tinha incriminado Simão. Pedia-lhe agora o perdão, que Violante concedeu.
Entretanto, um facto singular acontecia. As obras da igreja, iniciadas à época da execução de Simão, pareciam nunca mais ter fim. De tal forma que o povo se habituou a comparar “Tudo aquilo que não mais acaba” às obras de Santa Engrácia.”
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De facto, esta versão popular e romanceada sobre as origens da expressão “ São obras de Santa Engrácia” encontra fundamento nos relatos históricos da paróquia, em cujos anais ficou registado um incidente ocorrido na noite de 15 de Janeiro do ano de 1630, conhecido por “O Desacato de Santa Engrácia”.
"Lisboa preparava-se em grandes festejos para celebrar o nascimento do príncipe herdeiro que receberia o nome de Baltazar Carlos e que era filho de Filipe IV de Espanha e III de Portugal. Foi nesse ambiente que se propagou a notícia do roubo na igreja. Atribui-se este atentado sacrílego a um cristão-novo, ou seja, um judeu convertido. Incrível a comoção que causou este atroz sacrilégio, lançando-se logo pregões que nenhuma pessoa, sem nova ordem, saísse de sua casa e sem dilação decorreram por toda a cidade os ministros da justiça inquirindo com exactas diligências, que pessoas haviam saído na noite precedente e em que locais haviam estado. Achou-se que um homem ordinário, chamado Simão Pires Solis, havia estado fora e sendo perguntado onde, não respondeu a propósito, antes com grande turbação; ajuntaram-se outros indícios que caíram sobre ser homem turbulento e cristão-novo e por eles foi condenado a ser queimado vivo, cortando-lhe primeiro as mãos. A muitos pareceu acelerada e rigorosa esta sentença visto que não havia prova concludente, nem confissão do réu, mas, todavia, se executou na forma sobredita."
Nesta linguagem se descreve a inquirição do presumível responsável que sofreu o suplício em três de Fevereiro de mil seiscentos e trinta e um (1631). Segundo a lenda estava Simão Solis inocente do crime de que era acusado, pois nessa noite apenas rondava o Convento de Santa Clara para requestar (namorar, cortejar) uma religiosa, sendo a causa da sua desgraça o despeito e ciúmes dum rival Dr. Gabriel Pereira de Castro (1571-1632) que foi um dos juízes que condenaram o apaixonado cristão-novo.
Este desacato e a execução do presumível responsável fortemente emocionaram o povo que passou a referenciá-los, enriquecendo as suas narrações com a lenda. É assim que se conta que: «ao encaminhar-se para o suplício, o condenado profetizara ser tão certo estar inocente do que o acusavam, como nunca se haverem de concluir as obras de Santa Engrácia!». Essa frase tornou-se como uma maldição caída sobre as obras da nova igreja que permaneceram inacabadas por mais de dois séculos.
In “Monografia da Paróquia de Santa Engrácia (Lisboa) alusivas ao 4.º Centenário da sua Fundação”.
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A outra versão do significado da expressão “obras de Santa Engrácia” deve-se ao facto da construção da igreja de Santa Engrácia, situada na freguesia de São Vicente de Fora, onde é hoje o Panteão Nacional, ter demorado cerca de 350 anos a ficar concluída. As pessoas sempre viram, portanto, a igreja em obras e daí teria nascido a expressão.
Quanto aos motivos dessa demora, consulte-se o IPPAR, que nos apresenta a versão oficial, e que diz:
"Foram muitas as vicissitudes sofridas pela igreja de Santa Engrácia, num processo arrastado de obras que principiou nos finais do século XVI. O arrojado projecto barroco, da autoria de João Antunes, permaneceu sem cobertura, até ao início dos anos 60, do século XX, altura em que o regime do Estado Novo decide terminar o edifício segundo um hipotético plano primitivo. A decisão política procurava servir-se da imagem do monumento que, teimosamente, permanecia por terminar, ao logo de várias gerações, para provar a capacidade do regime na resolução eficaz de desafios. Assim, em pouco mais de dois anos, projectou-se uma dupla cúpula em betão revestida, de pedra lioz, e restaurou-se o interior, rico em diversos tipos de rocha, num propósito que contou com o empenhamento pessoal de Oliveira Salazar. A 7 de Dezembro de 1966, por ocasião do quadragésimo aniversário do Estado Novo, Santa Engrácia era inaugurada, no mesmo ano em que a Ponte sobre o Tejo passava a unir Lisboa a Almada.
Publicação nº 570 - O Sino da Aldeia - J.P.G.