O dia em que eu naci moura e pereça
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, o Céo se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desaventurada que se viu.
Sabemos que, com raras exceções, a obra lírica de Camões (1524?-1580) nunca foi publicada em livro, ficando dispersa nos chamados “livros de mão”, antologias poéticas manuscritas, hoje em grande parte desaparecidas; alguns dos que existem são de escassa confiabilidade e outros apresentam visíveis erros de cópia. Isto propiciou um indevido e abusivo acréscimo das peças líricas do poeta. No caso específico dos sonetos, chegou-se a atribuir a Camões nada menos de 400 textos. Por exemplo, para Faria e Sousa (século XVII), um dos compiladores da obra lírica de Camões, bastava que o soneto fosse belo e bem acabado para ser imediatamente incorporado ao universo lírico do autor de Os Lusíadas. A irresponsabilidade chegou a tal ponto que passaram por ser de Camões sonetos comprovadamente de outros poetas, especialmente Diogo Bernardes (1529?-1596), ou até os que já faziam parte do Cancioneiro geral de Garcia de Resende (1470-1536), publicado em 1516, cerca de dez anos antes do nascimento do poeta!