O Sol continua a nascer em cada manhã (Alentejo, 6:30 , Agosto/06 - foto minha)
Memórias
Passaram-se uns 25 anos, um quarto de século se nos quisermos fazer mais velhos.
Na altura, era um jovem professor, já casado, e que por entender que a criação de uma família era um dado primordial na minha forma de entender a vida, não quis fazer o périplo que outros fizeram pelo país fora, vindo a casa aos fins-de-semana, um cá e outro sabe-se lá onde, marido e mulher separados após recente matrimónio.
A minha companheira de todos estes anos estava então empregada, não enveredara pelos caminhos incertos do Ensino apesar do curso que havia terminado um ano antes de mim.
Dava eu aulas num colégio de Lisboa, a par de muitas outras particulares.
O colégio era um daqueles que vendiam o ensino como quem vende artigos de mercearia ou de qualquer outro ramo de primeiras necessidades.
Não descontava para a Segurança Social pois os donos só tinham registada uma pessoa em todo o colégio.
Queria lá eu saber disso! Pretendia trabalhar em Lisboa, ganhar menos do que no ensino oficial, mas estar perto da minha mulher e com ela começar a pensar num futuro filho.
Fiz, assim, a minha opção de vida. E, apesar de tudo, menos tempo de trabalho para efeitos de reforma por exemplo, não me arrependo. Nunca me arrependi.
Construí o que queria, não entrando no sistema que me poderia ter sugado a construção do que mais desejava.
Tinha então, como referi, muitas aulas particulares.
No meu local de trabalho, a que só chamei “colégio” para que se percebesse desde logo a que local me referia, dava aulas de Português, Inglês e Alemão a alunos que iam dos 10 aos 60 anos.
Algumas turmas eram constituídas quase exclusivamente por mulheres que pretendiam fazer o 2º ciclo. Recordo-me bem que ocupavam os primeiros tempos da tarde e chamava-lhes eu o “Clube das Donas de Casa”.
Outras eram turmas de miúdos, que pelas mais variadas razões os pais quiseram e puderam poupar ao caos que já se anunciava no ensino oficial. Aulas de manhã, 8:30, e à tarde ajudava-os na “Sala de Estudos” que lá criei.
Ao fim da tarde e à noite, enriqueci-me com a presença dos estudantes trabalhadores, que queriam e necessitavam de um grau académico mais elevado, para enriquecimento pessoal e para poderem ascender a lugares dentro das carreiras profissionais que, de outro modo, lhes estariam vedados.
Preparei muitos para os exames do Geral e do Complementar, os actuais 9º e 11º/12º.
Foi neste contexto que conheci, entre 1978 e 1980, um aluno que havia regressado de Angola. Não me lembro já, infelizmente, do seu nome.
Teria uma idade muito próxima da minha. Era alto, moreno, uma calvície que se aproximava e uns olhos castanhos mornos, envergonhados e tristes. Li neles sem qualquer dificuldade a saudade da sua Angola, a afronta sentida por ter de abandonar a sua terra, o seu espaço a céu aberto, os amigos, os companheiros de trabalho num Banco, as suas Cuca e Nocal, o camarão, o ananás, os cheiros de África…
Quase o vi chorar quando me disse que precisava prementemente de fazer a cadeira de Inglês que lhe faltava para poder ser integrado na categoria profissional devida no mesmo Banco que servira em Angola.
Fui tocado pela amargura do seu olhar e pela humildade e esmerada educação com que lidava comigo e com os colegas de estudo.
Propus-lhe, então, que tentasse arranjar mais uns dois ou três companheiros para que lhe ficassem mais baratas as “explicações” de Inglês.
Assim aconteceu.
Porém, a falta de jeito natural para a aprendizagem de uma Língua era gritante. O tempo para estudar, no final de um dia de trabalho, em nada o ajudava. Tive medo.
Contudo, conversei com ele e, sem obviamente lhe dar qualquer garantia de êxito – os exames eram nacionais e realizados numa escola pública ! – fi-lo acreditar que ia conseguir.
Reconhecendo as suas enormes dificuldades, aceitou o repto, se bem que descrente.Vinha a minha casa duas vezes por semana, trabalhámos persistentemente e com muita fé. Aumentei-lhe a auto-estima, entusiasmei-o, a ele e aos colegas, de forma a levá-lo a acreditar que ia conseguir.
Veio com a mulher a minha casa dar a notícia de que havia passado no exame.
Mais nervoso estava eu. Não queria acreditar que aquele jovem pudesse ficar com a carreira adiada.
Quando lhes abrimos a porta, os seus olhos descansaram-me.
Vi-os sorrir de esperança e de confiança pela primeira vez.
Depois, em conversa, falou-me sobre os projectos de vida aos quais agora, sim, poderia dar início.
São estas as medalhas que nunca qualquer Ministro néscio e carreirista me poderá roubar.
Assim me fiz professor.
Jorge G. texto e imagem 17-08-2006